Caímos perfeitamente nas garras do espetáculo. Estudamos anos a fio as mazelas do capital,
nos especializamos em especificidades: uns entendem perfeitamente a economia,
outros a política , a sociedade. Há quem
ainda se arrisque no campo das artes, outros são mestres na boemia inspiradora.
Organizamos-nos conforme o que consideramos prioritário: mulheres lutam contra
o machismo e o patriarcado, há quem lute legitimamente por terra e habitação,
outros por melhores condições financeiras para todos. Há quem batalhe por pão,
por igualdade racial, por direitos mais humanos, pela adoção de animais.
A mesma fragmentação do inimigo é reproduzida com maestria e
suprema organização. Tudo em ordem, e o progresso intelectual dos processos dos
coletivos, que dentre tantas facetas, utilizam-se de tecnologia e burocracias
várias para fazer valer seus teoremas. Mais e mais adeptos chegam, agregando
cérebros e braços em lutas separatistas, manifestos isolados uns dos outros,
como se a urgência de cada caso fosse mais urgente, como se o problema de
gênero fosse mais grave que o de classe, por exemplo, e vice e versa.
Nossa relação com o tempo do capital é extremamente
estúpida. Nossas relações pessoais nem mais burguesas são, são absolutistas e aristocráticas. Tornamos-nos o
espelho cheio de toxina botulínica e agrotóxicos do que pretendíamos combater.
Espaços são ocupados com a prerrogativa de serem devolutivas
da produção – compreenda-se o fazer de tais coletivos sendo considerado
PRODUÇÂO, outro absurdo de nossos tempos militantes do fetiche – de pensamento
e de pseudo ações para o povo, chamado carinhosamente de comunidade – outro
adendo , não dá pra resistir, como se houvesse mesmo possibilidade de uma
unidade comum com tanta fragmentação racionalmente escolhida por todos e todas
nós toda hora!
Que tempo é esse que nos impomos regras fascistas crentes de
estarmos combatendo o sistema? Que arrogância é essa que nos permite julgar
quem está ao lado como um desertor, um traidor da classe que luta? Que medo é
esse de estar no erro, de ter de acertar tudo, que necessidade infantil é essa
de ter de seguir o manual de instrução de Marx e companhia pra fazer valer de
fato a revolução?
O espiral está enferrujado faz tempo nas bandas daqui. A
pirâmide já virou quadrilátero, com uma
antena parabólica gigante, e cada um de nós protagoniza um interminável Big
Brother chato e sem perspectiva de final
milionário e global para todos.
Não que seja agradável tamanho pessimismo, se é que é
possível mesmo julgar dessa forma uma constatação tão evidente. Que vá as favas
qualquer juízo de valor, qualquer moral. Talvez um gesto mais radicalizado seja
mesmo necessário para quebrar um pouco essa formalidade que nos atravessa e nos
invade a cada encontro cheio de pautas e pausas, cheio de ironias e sapos
engolidos.
Repito ainda mais, com um certo cansaço e um dedinho de
descaso até, já que a necessidade de shows consecutivos de pura retórica serão
profeticamente repetidos e repetidos, permissivamente por quem diz não
quero-los mais, mas quando estes vem, são sempre acatados com até certa
admiração... Incompreensível às vezes a mesma passividade, os mesmos
personagens assumem a voz e a vez, dando ao capital novas formas travestidas de
transformação.
Voltando: não que isso seja pessimismo. Há que se reconhecer
onde estamos para unir o que ainda há pra ser unido e de fato caminharmos
juntos para algo que seja de fato transformador para todas e todos. Uma nova relação com o tempo, com o fazer das
coisas. Um não veemente as burocracias de toda ordem. Reinventar a lógica pra que esta não tenha
traços reproduzidos do que se quer combater a todo e qualquer custo.
Há que se abrir mão e talvez bolso e ego e vaidade para que
novos tempos venham, sem concessões absurdas que privilegiem poucos escolhidos
pelo Pai capitalista em detrimento de tantos a deriva. Repito o devaneio de
caminhar junto. Reavivo a chama da fraternidade. Igualdade de ação, embora na
diversidade de pensamento, sentimento e sensação.